O Deus Caído
Terceira Parte
Natalie chegou exausta a casa, eram quase seis da tarde. Ao olhar em volta, arregalou os olhos. Até saiu e olhou para o número da porta, para verificar que aquela era, de facto, a sua casa. Não havia um cabelo no chão nem um grão de pó nos móveis perfeitamente alinhados; as roupas estavam todas dobradas em cima da mesa da sala; as almofadas do sofá estavam arranjadas e perfeitamente encostadas; havia um cheiro a flores no ar.
- X? – Chamou Natalie, enquanto fechava a porta.
- Raios! – Ouviu, vindo da cozinha. Foi para lá que se encaminhou, e viu o belo Deus de cabelos loiros perto do fogão, com as panelas e deitarem a água fervida toda para fora. Deu-lhe um toque para que se desviasse e desligou todos os bicos do fogão, sorrindo – Desculpa Natalie… queria-te agradecer… e fazer o jantar… mas é mais difícil do que parece.
Natalie soltou uma gargalhada.
- Não precisavas de ter feito nada disto. Mas obrigado.
Kröll riu e foi até à arca, agarrando num ramo de flores que estava lá em cima, passando-o depois para Natalie.
- Fui à rua. Pensei em explorar um pouco. Via-as e pensei em ti.
Natalie sorriu e as bochechas ficaram ligeiramente encarnadas.
- Obrigado. Deixa-me pô-las num vaso com água, para não murcharem.
Decidiram ir comer fora, em vez de ficarem em casa. Kröll estava-se a revelar um ser completamente novo. Fora do seu habitat natural e sem as memórias da outra vida, o seu sentido de justiça e coragem continuavam presentes, porém misturavam-se com a empatia e carinho que começava a sentir pela estranha que o acolhera. Sentimentos esses que, outrora, nunca tinham habitado o seu corpo.
Falaram de um modo cúmplice e familiar desta vez, sem entraves nem momentos constrangedores. A conversa simplesmente fluía.
- Então… se não gostas da tua vida, porque continuas nela? – Questionou Kröll – Porque não mudas?
Natalie respirou fundo.
- Não sou aventureira – murmurou – Nunca fui, não é algo que acho que possa ser. Contento-me com o que tenho, e sei que isso não é bom, que devemos sempre ambicionar mais, mas… Não sei.
- Há uma palavra para isso: medo. És uma medricas.
- Não sou nada uma medricas! – Exclamou ela, a rir-se.
- És, mas não faz mal. O medo é parte de nós, tal como a nossa cabeça, ou o nosso coração. É o que faz de nós o que somos. Quando superares esse medo vais ver que consegues ser uma pessoa ainda mais extraordinária.
Por momentos Natalie permaneceu calada, sem saber o que responder perante aquela afirmação.
- Sabes, para alguém que perdeu as memórias, falas muito bem.
Kröll riu.
- Obrigado.
Depois do jantar caminharam lado a lado até um parque, que percorreram também devagar. Era como um filme, e nenhum deles conseguia acreditar que aquilo estava a acontecer. Tinham a perfeita noção que era de loucos, mas ninguém podia negar que havia algo mais entre eles além daquela tensão.
Chegaram a casa por volta da meia-noite, e ficaram os dois especados à porta da sala. Era ali que se despediam: Kröll iria para a sala, Natalie para o quarto. Mas nenhum deles desejava isso.
- Eu diverti-me – murmurou Kröll, exibindo um sorriso simples.
Natalie assentiu.
- Sim… eu também – um momento de silêncio tomou a vez, e pouco depois Natalie encolheu os ombros – Bem, boa noite…
- Sim… boa noite – ela voltou-se de costas e começou a percorrer o corredor para o quarto, mas Kröll ficou parado no mesmo sítio apenas a observá-la, até que decidiu tomar uma atitude – Natalie!
A mulher voltou-se para trás e, quando o fez, já tinha o corpo dele colado ao seu. Kröll inclinou-se ligeiramente e Natalie colocou-se em bicos de pés, fazendo com que os lábios dos dois finalmente se encontrassem, como tinham ansiado por toda a noite. Os braços fortes do Deus puxaram mais o corpo da professora para si e teimavam em não a largar, o que não a chateava de todo. Estiveram assim por alguns minutos, até que ambos entraram no quarto e se deitaram na cama. Natalie encontrava-se de barriga para cima, com a cabeça pousada no seu peito, enquanto ele brincava com os seus cabelos castanhos. Nenhum deles sabia bem o que dizer, mas também nenhum sentia que precisava de dizer alguma coisa. Aquele silêncio sabia-lhes bem.
- É mau que agora não queira recuperar as minhas memórias? – Perguntou Kröll, ao fim de alguns minutos. Natalie franziu as sobrancelhas e voltou-se para ele, de modo a olhar-lhe nos olhos.
- Porque não quererias isso?
- Porque teria que me ir embora daqui. E isso iria requerer forças que não tenho.
Natalie sorriu.
- Nunca sabemos a força que temos, até termos que a usar – proferiu.
- Se pudesse escolher, prolongava este momento ao máximo. Não consigo perceber… posso não me lembrar de nada, mas tenho a certeza que nunca me senti como me sinto contigo.
Ela corou.
- Eu também não.
Adormeceram momentos depois, nos braços um do outro. Bem dentro do seu inconsciente, as memórias de Kröll saltavam e tentavam arranhar o muro colocado por Gnaux. Aos poucos davam-lhe sonhos da sua vida, sonhos das batalhas, tornavam-lhe o sono inquieto.
✵✵✵
Gnaux mandou chamar o seu melhor guerreiro, Zohrtha, e este tinha acabado de entrar na Câmara Principal, onde o auto titulado Imperador se encontrava.
- Como posso satisfazer a tua vontade, Deus Imperador Gnaux? – Questionou – Ofereço todos os meus serviços.
O Deus levantou-se do seu trono e caminhou até ao servente, arrastando o seu manto roxo pelo chão à medida que andava, com o Ceptro do pai ligeiramente levantado.
- Fiz um erro, ao exilar o meu irmão no planeta Terra – explicou – Os rebeldes ainda têm fé que ele vá retornar para mudar o rumo e história de Suptka.
Zohrtha franziu as sobrancelhas.
- Mas estão errados – apressou-se a afirmar – As nossas tropas são fortes, e além disso ele nunca conseguirá voltar para cá. Não enquanto não souber quem é.
- Concordo. Porém, apenas pelo facto de essa esperança existir, vários Suptakianos recusam-se a inclinar-se perante mim e a reconhecer-me como seu Imperador. Deves ir à Terra, deves encontrar o meu irmão e matá-lo sem piedade. Traz-me o seu corpo defunto para que faça dele um exemplo para todo o planeta. Traz-mo sem demoras, Zohrtha, conto contigo.
- Sim, meu Imperador.
E vamos a meio.
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