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O Véu entre Mundos

por Andrusca ღ, em 29.08.11

"- Vais-me dar muitas dores de cabeça, não vais?

- Depende de ti se me voltas a ver, ou não. Mas quando morreres… - peguei numa caneta que estava em cima de um armário ao meu lado, e peguei na sua mão, escrevendo lá o meu número de telemóvel – possui alguém e telefona-me.

- Eu não gostei de ti – afirmou, enquanto eu entrava para o elevador e pressionava o botão para descer até ao rés-do-chão.

- Também não gostei de ti – retorqui, encolhendo os ombros."

 

Capítulo 2 (parte 1)

A Antiga Casa

 

O táxi deixou-me no princípio da rua, e segui o resto do caminho a pé, até me encontrar em pé, imóvel, a fitar aquela antiga casa onde cresci. Continuava igual. Os mesmos pilares no alpendre, a mesma pintura bege e castanha, as mesmas ervas na lateral das escadas – apesar de outrora terem estado cheias de vida e agora estarem mais mortas que Frank. A verdade é que não tenho muitas recordações desta casa, aliás, mal me lembro de coisas antes de descobrir que via fantasmas. Apenas sinto que é importante de mim, como se fizesse parte do meu corpo, de quem sou. Afinal, foi aqui que tudo aconteceu.

O letreiro à beira da estrada, a dizer “Vende-se” já ali estava plantado desde que a minha mãe morrera e eu fora entregue aos serviços sociais, e nunca ninguém tinha comprado a casa. Houve propostas, negociações foram postas em andamento, mas nunca ninguém levou a compra avante. Alguns alegam que é amaldiçoada, outros assombrada. Mas ninguém, mais que eu, sabe o quão verdade é isso. E no entanto cá estou eu, pronta para tirar aquela placa dali. Pronta para regressar ao sítio onde tudo começou. Depois de já ter procurado em tantos outros sítios, finalmente decidi enfrentar o medo e tentar a minha sorte no princípio de tudo. E não foi uma decisão que fosse feita de ânimo leve, porque apesar de ver fantasmas e tudo o mais, não sou daquelas pessoas que não têm medo de nada nem nada do género. Pelo contrário, só de olhar para esta casa, para a minha casa, fico com arrepios da cabeça aos pés.

- Está a pensar comprar essa casa? – Ouvi, vindo o meu lado direito. Virei a cara e vi uma senhora já com os seus cabelos grisalhos disfarçados com alguns castanhos clarinhos, com um sorriso de orelha a orelha e que me observava cuidadosamente. Não sei porquê, mas a sua cara não me era muito estranha.

- Não, eu… a casa é minha, sempre foi – respondi, sorrindo-lhe também.

Nos olhos dela formou-se um brilho, e alargou ainda mais o sorriso.

- Nicole? – Perguntou – A pequena Nicole Conrad… não te lembras de mim, pois não?

- Lamento eu…

- Não faz mal, quando saíste daqui eras pequenina. Eu vivo ali – esticou o braço e apontou para duas casas à frente da minha, mas do outro lado a rua  – Chamo-me Eleanor, costumavas brincar com os meus filhos.

Eleanor… Eleanor… tentei forçar as memórias a aparecer.

 

Vi-me a mim própria numa cozinha de uma casa com um papel de parede amarelo-torrado, e duas crianças comigo. Uma da minha idade, e um poucos anos mais velho, provavelmente. Observei a pequena eu, não devia ter mais de seis anos.

- Sheilla, vem à mãe – disse uma mulher. E assim, Sheilla, a rapariga que brincava comigo, largou a boneca que tinha na mão e correu para uma mulher. Era uma mulher bastante bonita, com um cabelo castanho clarinho e uns olhos também claros, com um sorriso bem aberto.

- Então princesa? – Perguntou um homem, abrindo os braços para ela – Já não se dá um abraço ao velhote?

- Papá! – Disse Sheilla, enquanto passou por mim a correr para se ir agarrar ao homem, que a levantou e começou a rodar com ela.

- Nikki, querida, queres jantar cá? – Perguntou a mulher, mas para a minha versão mais nova, que estava a ser chateada pelo rapaz.

- Tenho que pedir à minha mãe – respondeu-lhe a pequena eu, fazendo uma careta.

- Ela vai deixar – disse o homem, optimista – Deixa sempre, assim podem ficar os quatro a brincar. – Os quatro… vi Hugh, uma figura igualzinha a mim aparecer pela porta, a rir-se. Trazia dois soldadinhos na mão.

 

- Nicole? – Eleanor abanava a sua mão em frente aos meus olhos, nem sei bem durante quanto tempo.

Às vezes sou levada para outros tempos, apenas por alguns segundos. É um género de visões, que me mostram bocados de memória que ficaram bem escondidos no meu cérebro. Na maior parte das vezes tenho dores de cabeça fortíssimas antes, mas desta vez foi natural. Claro que esse é apenas um dos tipos de visões que tenho. Aquelas que os fantasmas me dão são outras, para me mostrarem pedaços da vida que levavam enquanto vivos, ou então os seus últimos momentos, ou ainda o que querem que faça. Alguns gostam bastante de enigmas, coisa que nunca me deixou fascinada.

- Desculpe – desculpei-me, sorrindo-lhe – Sim, já me lembro. É tão bom vê-la.

- E tu cresceste tanto. Tornaste-te numa mulher tão bonita. Dá cá um abraço – e assim, do nada, abraçou-me. Foi dos abraços mais demorados da minha vida, e também o que melhor me soube tanto dar, como receber. Nestes poucos segundos senti coisas que já há muito que não sentia. Preocupação era uma delas. Eu também tinha uma certa facilidade em perceber o que as pessoas sentiam – Vem almoçar lá a casa, filha. Já está na hora, e a rapaziada deve estar a chegar. Hoje é dia de almoço em família.

- Não, eu não quero incomodar – desculpei-me, abanando a cabeça – Eu vou comer a um sítio qualquer.

- Disparates – exclamou Eleanor – Vais e não se fala mais nisso. Queres ir deixar essas tuas malas à tua casa?

- Sim, eu… eu vou deixar as malas e já lá vou ter, sendo assim – afirmei, um bocado sem jeito. A verdade é que já não estava habituada a ter pessoas a olharem por mim.

Eleanor olhou-me mais uma vez e desviou-me uma mecha de cabelo da cara, prendendo-a atrás da orelha, sorrindo-me em seguida.

- Vamos esperar – garantiu-me, antes de se pôr a caminho da sua casinha.

Respirei fundo e peguei nas minhas duas malas. Sim, eu só tinha duas malas. Como nunca fico muito tempo no mesmo sítio, tenho poucas coisas.

Quando cheguei à porta notei que estava a tremer. “Controla-te Nikki, vais ter que ficar aqui, lembras-te?”, discuti, comigo mesma. Enfiei a chave no trinco e abri a porta, fazendo-a ranger. Dei por mim especada em frente ao hall de entrada que se estendia à minha frente. Na minha lateral direita tinha logo as escadas em formato de caracol, que davam ao primeiro andar, mas eu não as ia subir. Olhei para a sala, separada do hall por apenas poucos arcos de madeira, no meu lado esquerdo. Os móveis estavam todos cobertos por plásticos, que tinham mais pó que um túmulo velho. Talvez deva ficar no hotel mais um dia… “Desculpas, estás a arranjar desculpas”, discutiu de novo o meu cérebro.

Deixei as malas à balda no chão do hall e fechei logo a porta. Se calhar tomei uma decisão precipitada, se calhar não devia ter voltado para casa. Isto não parece meter-me menos nervosa do que metia há dezanove anos atrás.

Andei até ao alpendre da casa de Eleanor e respirei bem fundo antes de bater à porta. Não sabia bem o que esperar.

- Está aberta querida! – Gritou-me Eleanor, depois de eu ter batido.

Abri a porta e espreitei, fechando-a em seguida. O cheiro era familiar, e também me dava sensações conhecidas. Boas.

- Olá – disse-me o pai de Sheilla, o homem que me lembrei chamar-se Albert, que estava sentado no sofá da sala e que me fez um cumprimento com a cabeça. Ele estava diferente, a idade não tinha sido tão gentil para ele como fora para Eleanor. Já tinha os seus cabelos brancos, e tinha um aspecto meio doente, bastante deitado abaixo.

Ouvi passos na nossa direcção, e por isso apenas lhe dirigi um sorriso que pareceu deixá-lo surpreendido. Não devia estar à espera que eu o tivesse visto.

- Oh querida, vem, importas-te de me dar uma ajuda? – Pediu Eleanor, chegando à minha beira.

- Claro que não, do que é que precisa? – Perguntei, seguindo-a para a sala de jantar. Tinha vários pratos em cima da mesa, todos empilhados, e os talheres também, juntamente com copos e guardanapos.

- Podes distribuir essas coisas pelos lugares, querida? – Perguntou – E eu vou trazer a comida. Enquanto esperamos vou querer ouvir tudo do porquê de teres desaparecido.

- Claro – era mais uma resposta à primeira pergunta, porque do segundo pedido tudo o que eu queria fazer era evitar responder. Mas agora que voltei para a Washington DC vai ser um bocado difícil evitar essas perguntas, especialmente morando no mesmo sítio que antes.

Eu distribuí a loiça pelos lugares e Eleanor trouxe um tacho para o centro da mesa. Nesse preciso momento ouvi a porta da rua abrir e vários passos de corrida avançarem para dentro de casa, sendo acompanhados por risinhos.

- Mãe? – Ouvi, quando a porta bateu. Era uma voz de mulher, Sheilla provavelmente.

Quando ambas, eu e Eleanor, íamos a sair da sala de jantar para irmos ter com eles – sim, porque pelos passos eram mais que duas pessoas –, uma criança veio contra mim. Desviou-se e olhou para mim, surpreendida. Era uma rapariga de cabelos bem escuros, que me sorriu.

- Oi – cumprimentei, sorrindo-lhe.

- Avó, quem é esta senhora? – Perguntou ela, escondendo-se atrás da perna da avó com vergonha.

- É uma amiga, filha – explicou Eleanor.

- Chamo-me Nikki – disse-lhe eu – E tu?

- Maggie – respondeu ela, a rir-se – E aquele é o meu irmão Jesse – explicou, apontando para um rapaz que se dirigia a nós, devagar, também ele com um ar de vergonha. Era mais novo que ela, talvez estivesse com cinco anos, enquanto Maggie devia ter uns sete.

- Oi Jesse – cumprimentei, também.

E então vi uma rapariga da minha idade, de cabelos castanhos-claros e sorridente, que olhava para mim confusa.

- A família está quase toda cá! – Exclamou Albert, assustando-me só a mim. Os outros nem deram por ele, como era de esperar.

- Desculpa, quem és…

- É a Nicole – Eleanor interrompeu Sheilla – Lembras-te da Nicole, certo? Vocês costumavam brincar juntas cá em casa, ela morava…

- Eu lembro-me – afirmou Sheilla, sorrindo-me – Pensava que te tinhas mudado, o que é que aconteceu?

- E mudei – encolhi os ombros e sorriu-me –, mas agora voltei. Tu estás… fantástica.

- Obrigado. Tu também – ela aproximou-se e deu-me um abraço. Não me lembrava da família ser tão calorosa – Vejo que continuas com a mania de manter o cabelo loiro comprido – brincou.

- Funciona bem assim, com os meus olhos verdes – brinquei também.

- Nikki, este é o meu marido, James – apresentou, apontando para o homem que estava um pouco mais atrás de nós, que me cumprimentou com a cabeça –, e acredito que já tenhas conhecido os pirralhos. Como se não fosse o suficiente ser mãe tão cedo, não parei por um.

- Bem, eles parecem maravilhosos – e pareciam mesmo. – Onde está o teu irmão? – Não me consigo lembrar do nome dele, mas eu sei que ela tem um irmão. Ele costumava roubar-me as bonecas, disso eu lembro-me bem.

- Oh, ele anda sempre atrasado – queixou-se Sheilla.

- É por causa do trabalho – defendeu Eleanor.

- Eu também trabalho – resmungou James baixinho, o que me fez suprimir um riso, visto que mais ninguém se pareceu importar com o comentário.

- Ele deve estar a…

- Família, cheguei! – Tristemente nem tive que desviar o olhar para a porta para ver quem entrou. Reconheci a voz de imediato, ainda de manhã a tinha ouvido bem. Agente Rick Fallon.

- Raios – Murmurei, baixinho.

- O que é que estás aqui a fazer? – Perguntou-me ele, olhando desconfiado para todos presentes no hall de entrada.

- Vá Rick, não sejas rude – ralhou-lhe a mãe – A Nicole é uma convidada.

- Porquê? – Insistiu ele – De onde é que se conhecem?

- Bem… - dei um passo na sua direcção e pressionei os lábios um no outro, olhando Rick – eu costumava vir cá para casa brincar com a tua irmã.

- C’um caraças – exclamou – Tu eras a rapariga da casa que tem estado vazia. Eu sabia que reconhecia o nome, mas não me conseguia lembrar de onde.

- Exacto – confirmei.

- Mas tu apenas desapareceste. O que é que se passou contigo?

- Eu… posso falar contigo a sós? Só um segundo? – Pedi.

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